Intoxicação por Cocaína
Classe toxicológica: Estimulante do Sistema Nervoso Central / Simpatomimético / Alcaloide
Nomes comerciais/Outros nomes: Pó, farinha, branquinha, neve, crack (forma fumada), oxi, merla, pasta base
Dose tóxica:
- Adultos: Não há dose tóxica bem estabelecida. Doses de 20mg podem causar sintomas em indivíduos sem tolerância. Doses de 1,2g ou superiores são potencialmente letais
- Crianças: Qualquer quantidade pode ser tóxica
- Observações sobre variabilidade individual: Efeitos dependem da via de administração (nasal, EV, fumada), tolerância prévia, uso concomitante de outras substâncias (principalmente álcool), estado cardiovascular prévio e sensibilização à substância. Usuários crônicos podem desenvolver sensibilização, apresentando convulsões com doses anteriormente toleradas
Quadro clínico:
- Sinais e sintomas iniciais (primeiras horas):
- Euforia, hiperatividade, desinibição
- Aumento da autoestima, estimulação sexual
- Agitação psicomotora, ansiedade
- Descarga adrenérgica: taquicardia, hipertensão arterial, sudorese, vermelhidão facial
- Midríase (pupilas dilatadas)
- Hipertermia
- Diminuição da necessidade de sono, anorexia
- Disforia, irritabilidade, agressividade
- Ideação paranoide, delírio persecutório
- Confusão mental
- Dor torácica (isquemia miocárdica)
- Sinais e sintomas tardios:
- Convulsões (não dose-dependente)
- Isquemia/infarto agudo do miocárdio
- Arritmias cardíacas (taquicardia ventricular, fibrilação ventricular)
- Acidente vascular cerebral (isquêmico ou hemorrágico)
- Hipertermia maligna
- Rabdomiólise
- Acidose metabólica
- Coagulação intravascular disseminada (CIVD)
- Insuficiência renal aguda
- Edema agudo de pulmão
- Estados maniformes ou psicóticos
- Achados ao exame físico:
- Taquicardia, hipertensão arterial
- Pupilas midriáticas
- Pele quente, sudorese profusa
- Hiperreflexia, tremores
- Agitação psicomotora intensa
- Alteração do nível de consciência (nos casos graves)
- Rigidez muscular (casos com hipertermia)
Exames complementares indicados:
- Avaliação inicial:
- Eletrocardiograma (ECG) - procurar sinais de isquemia, alterações de ST-T, arritmias
- Troponina cardíaca (dosagem seriada se dor torácica ou alterações eletrocardiográficas)
- Hemograma completo
- Glicemia
- Avaliação de complicações:
- Ureia, creatinina, eletrólitos (Na, K, Ca, Mg)
- Creatinofosfoquinase (CPK) - rastreio de rabdomiólise
- Gasometria arterial - avaliar acidose metabólica
- Exame de urina tipo I (EAS) - avaliar mioglobinúria
- Lactato sérico
- Coagulograma (se suspeita de CIVD)
- Transaminases hepáticas (TGO, TGP)
- Exames de imagem quando indicados:
- Tomografia computadorizada de crânio (se alteração neurológica focal, convulsões ou TCE)
- Radiografia de tórax (se sintomas respiratórios ou suspeita de edema pulmonar)
- Timing:
- ECG e troponina na admissão e repetir troponina em 3-6h se dor torácica
- CPK na admissão e repetir se valor inicial elevado ou sintomas de rabdomiólise
Critérios de internação:
- Alterações eletrocardiográficas sugestivas de isquemia miocárdica
- Troponina elevada
- Dor torácica persistente ou recorrente
- Arritmias cardíacas
- Hipertensão arterial grave refratária ao tratamento inicial
- Convulsões (especialmente se recorrentes)
- Alteração do nível de consciência
- Hipertermia (temperatura axilar > 38,5°C)
- Sinais de rabdomiólise (CPK > 5.000 U/L ou em elevação)
- Insuficiência renal aguda
- Acidose metabólica grave
- Agitação psicomotora grave refratária ao tratamento
- Sintomas psicóticos intensos
- Ideação suicida ou comportamento autodestrutivo
- Critérios para UTI:
- Síndrome coronariana aguda com instabilidade hemodinâmica
- Arritmias malignas
- Convulsões de difícil controle
- Hipertermia grave (> 40°C)
- Rabdomiólise severa com risco de insuficiência renal
- Necessidade de sedação profunda/intubação orotraqueal
- Instabilidade hemodinâmica
Tratamento:
-
Medidas gerais:
- ABCDE: avaliar vias aéreas, respiração, circulação
- Monitorização contínua: PA, FC, ECG, temperatura, saturação de O₂
- Acesso venoso calibroso
- Oxigenioterapia se saturação < 92%
- Ambiente calmo, com poucos estímulos (luz baixa, ruídos mínimos)
- Contenção física apenas se absolutamente necessária (risco de agitação e arritmias)
- Hidratação venosa com solução fisiológica 0,9%
- Resfriamento em casos de hipertermia (compressas frias, ventiladores)
- Não há indicação de descontaminação gastrointestinal (lavagem gástrica ou carvão ativado) pois as vias de uso são nasal, EV ou inalatória
-
Antídoto/Tratamento específico:
- Não existe antídoto específico para intoxicação por cocaína
- O tratamento é sintomático e de suporte
-
Tratamento de suporte:
Para agitação/ansiedade:
- Primeira linha - Benzodiazepínicos:
- Diazepam 10mg/2mL (5mg/mL) - 02 ampolas + SF0,9% 96mL, EV lento em 3-5 minutos (dose total: 10-20mg)
- OU Midazolam 15mg/3mL (5mg/mL) - 01 ampola (5-7,5mg), EV lento ou Midazolam 15mg/3mL (5mg/mL) - 01 ampola, IM
- OU Lorazepam 4mg/1mL - 01 ampola (2-4mg), EV lento
- Podem ser repetidos conforme necessidade
Para agitação grave refratária a benzodiazepínicos:
- Haloperidol 5mg/1mL - 01 ampola, IM (evitar via EV pelo risco de prolongamento do intervalo QT)
- Considerar associação: benzodiazepínicos + antipsicótico
- EVITAR uso isolado de haloperidol - preferir associação com benzodiazepínico
- NUNCA usar flumazenil em pacientes intoxicados por cocaína (aumenta risco de convulsões)
Para hipertensão arterial:
- Primeira linha: Benzodiazepínicos (o controle da agitação frequentemente normaliza a PA)
- Se refratário:
- Nitroprussiato de sódio em BIC (preferencial em emergências hipertensivas)
- OU Nitroglicerina 25mg/5mL (5mg/mL) - 01 ampola + SF0,9% 245mL, EV em BIC, iniciar com 5mL/h e titular conforme PA
- EVITAR betabloqueadores (risco de vasoconstrição paradoxal e piora da hipertensão por efeito alfa-adrenérgico não antagonizado)
Para dor torácica/isquemia miocárdica:
- Benzodiazepínicos (primeira linha)
- Nitroglicerina sublingual 5mg - 01 comprimido (pode repetir até 3x com intervalo de 5 minutos)
- OU Nitroglicerina 25mg/5mL (5mg/mL) - diluir em SF0,9%, EV em BIC
- AAS 200mg - mastigar 01 comprimido (se síndrome coronariana aguda)
- EVITAR betabloqueadores mesmo em IAM por cocaína
- Considerar bloqueadores de canais de cálcio (Diltiazem)
- Encaminhar para estratificação invasiva se síndrome coronariana aguda confirmada
Para convulsões:
- Diazepam 10mg/2mL (5mg/mL) - 02 ampolas, EV lento (dose: 10-20mg)
- OU Midazolam 15mg/3mL (5mg/mL) - 01-02 ampolas (7,5-15mg), EV
- Repetir se necessário até controle das convulsões
Para hipertermia:
- Medidas físicas de resfriamento: compressas frias, ventiladores, ambiente refrigerado
- Benzodiazepínicos (reduzem atividade muscular)
- Hidratação venosa vigorosa
- Se temperatura > 40°C e refratária: considerar sedação e medidas de resfriamento intensivo
Para rabdomiólise (CPK > 5.000 U/L):
- Hidratação venosa agressiva:
- SF 0,9% 1.000-2.000mL/h EV (ajustar conforme débito urinário e sinais de congestão)
- Meta: débito urinário > 200-300 mL/h
- Alcalinização urinária (se pH < 7,5 e bicarbonato < 30 mEq/L):
- Bicarbonato de sódio 8,4% 150mL + SG5% 850mL - correr 200mL/h em BIC
- Objetivo: manter pH urinário > 6,5
- Monitorar cálcio sérico de 2/2h
- Monitorar função renal, eletrólitos, CPK seriada
- Considerar hemodiálise se insuficiência renal estabelecida
Para sintomas psicóticos/delírio:
- Benzodiazepínicos (primeira linha)
- Se refratário: Haloperidol 5mg/1mL - 01 ampola, IM associado a benzodiazepínico
- Primeira linha - Benzodiazepínicos:
Tempo de observação:
- Mínimo de 6 horas para pacientes sintomáticos com intoxicação leve sem complicações
- Mínimo de 12-24 horas se:
- Dor torácica (devido à meia-vida curta da cocaína de 1-2h, mas risco de isquemia tardia)
- Alterações eletrocardiográficas
- Agitação importante que necessitou medicação
- Sintomas psicóticos
- Hipertensão persistente
- 24-48 horas ou mais se:
- Troponina elevada
- Arritmias
- Convulsões
- Hipertermia
- CPK elevada
- A observação deve ser prolongada se houver uso concomitante de outras substâncias ou se sintomas persistirem
Critérios de alta:
- Paciente assintomático e estável hemodinamicamente por pelo menos 6 horas
- Ausência de alterações eletrocardiográficas isquêmicas
- Troponina normal em dosagens seriadas (se realizada)
- Ausência de arritmias cardíacas
- Pressão arterial controlada sem necessidade de medicação EV
- Ausência de sintomas psicóticos ou agitação
- Temperatura normal
- CPK normal ou em queda se previamente elevada
- Função renal preservada
- Paciente lúcido, orientado e cooperativo
- Rede de suporte adequada no domicílio
- Orientações pós-alta:
- Retornar ao serviço se dor torácica, palpitações, dispneia, alterações neurológicas
- Encaminhamento para seguimento em serviço de saúde mental/CAPS-AD
- Orientações sobre riscos do uso de cocaína
- Encaminhar para cardiologia se houve manifestações cardíacas
Observações importantes:
- Particularidades do manejo:
- A intoxicação por cocaína é autolimitada, com meia-vida de 1-2 horas
- Uso concomitante de álcool e cocaína forma cocaetileno, que potencializa efeitos cardiotóxicos e prolonga a intoxicação
- Poliusuários (associação com outras drogas) são muito frequentes
- O risco de complicações cardiovasculares não está relacionado à dose, mas à susceptibilidade individual
- Fenômeno de sensibilização: usuários crônicos podem desenvolver convulsões com doses antes toleradas
- Evitar betabloqueadores em TODAS as situações (risco de vasoconstrição coronariana paradoxal)
- Evitar flumazenil (aumenta risco de convulsões)
- Benzodiazepínicos são a base do tratamento sintomático
- Prognóstico:
- Geralmente bom se tratamento adequado e ausência de complicações graves
- Mortalidade relacionada principalmente a: IAM, arritmias malignas, AVC, hipertermia grave, convulsões prolongadas
- Sequelas neurológicas podem ocorrer em casos de AVC ou hipóxia prolongada
- Complicações tardias a monitorar:
- Síndrome coronariana aguda pode ocorrer até 24h após o uso
- Cardiomiopatia induzida por cocaína (uso crônico)
- Miocardite
- Dissecção aórtica
- AVC (isquêmico ou hemorrágico)
- Perfuração do septo nasal (uso crônico intranasal)
- Pneumotórax, pneumomediastino (uso de crack)
- Interações relevantes:
- Álcool + cocaína = cocaetileno (maior cardiotoxicidade)
- Antidepressivos tricíclicos + cocaína (risco de arritmias)
- IMAO + cocaína (risco de crise hipertensiva grave)
- Outras drogas estimulantes (potencialização dos efeitos)
- Ajustes em populações especiais:
- Gestantes: Risco de descolamento prematuro de placenta, abortamento, sofrimento fetal. Tratamento similar, evitar betabloqueadores. Monitorização fetal se viável
- Idosos: Maior risco de complicações cardiovasculares. Reduzir doses de benzodiazepínicos
- Insuficiência renal: Atenção especial à hidratação e prevenção de rabdomiólise. Ajustar doses de medicações eliminadas por via renal
- Insuficiência hepática: Cuidado com sedação excessiva por benzodiazepínicos. Monitorar função hepática
- Cardiopatas: Maior risco de eventos cardiovasculares graves. Considerar internação mesmo em casos leves
- Contato com CIATox: Sempre considerar contato com o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (0800 014 1212 ou verificar CIATox regional) para auxílio na condução do caso