Intoxicação por Opioides
Classe toxicológica: Analgésicos narcóticos / Depressores do Sistema Nervoso Central
Nomes comerciais/Outros nomes: Morfina, Codeína, Tramadol, Metadona, Oxicodona, Fentanil, Heroína, Alfentanil, Sufentanil, Remifentanil, Meperidina (Dolantina®), Petidina
Dose tóxica:
- Adultos: Variável conforme o opioide específico e tolerância prévia. Doses terapêuticas podem causar toxicidade em pacientes sem uso prévio
- Crianças: Qualquer ingestão acidental deve ser considerada potencialmente grave
- Observações sobre variabilidade individual:
- Usuários crônicos desenvolvem tolerância significativa, necessitando doses maiores para toxicidade
- Pacientes naive (sem uso prévio) apresentam maior sensibilidade
- Opioides de longa duração (metadona, buprenorfina) apresentam risco prolongado
- Formulações transdérmicas (adesivos de fentanil) podem liberar grandes quantidades de forma prolongada
Quadro clínico:
- Sinais e sintomas iniciais (primeiras horas):
- Tríade clássica: depressão do nível de consciência, depressão respiratória e miose
- Sonolência progressiva, confusão mental
- Náuseas e vômitos
- Bradipneia (frequência respiratória < 12 irpm)
- Bradicardia
- Hipotensão
- Prurido
- Sinais e sintomas tardios:
- Estupor ou coma profundo
- Apneia ou parada respiratória
- Edema agudo de pulmão não cardiogênico
- Hipotermia
- Convulsões (principalmente meperidina e tramadol)
- Rabdomiólise (em casos de imobilização prolongada)
- Síndrome compartimental
- Achados ao exame físico:
- Pupilas: Miose puntiforme bilateral, reativa à luz (patognomônico)
- Neurológico: Glasgow reduzido, hiporreflexia, hipotonia
- Respiratório: Bradipneia, respiração superficial, crepitações pulmonares (edema)
- Cardiovascular: Bradicardia, hipotensão, pulsos periféricos diminuídos
- Pele: Cianose, palidez, marcas de punção venosa (usuários crônicos)
- Extremidades: Lesões por pressão, sinais de rabdomiólise
Exames complementares indicados:
- Gasometria arterial: Acidose respiratória (pCO₂ elevado), hipoxemia
- Hemograma completo: Leucocitose em complicações infecciosas
- Função renal: Ureia, creatinina (avaliar rabdomiólise)
- CPK (creatinoquinase): Elevada em rabdomiólise
- Eletrólitos: Sódio, potássio, cálcio
- Glicemia capilar: Excluir hipoglicemia
- ECG: Avaliar arritmias, intervalo QT (principalmente metadona)
- Radiografia de tórax: Edema pulmonar, pneumonia aspirativa
- Dosagem sérica de opioides: Confirma exposição, mas não altera conduta aguda
- Screening toxicológico urinário: Identificar uso concomitante de outras substâncias
- Tomografia de crânio: Se trauma associado ou rebaixamento prolongado sem resposta à naloxona
- Timing: Exames laboratoriais devem ser colhidos na admissão; gasometria seriada conforme evolução respiratória
Critérios de internação:
- Rebaixamento do nível de consciência (Glasgow ≤ 14)
- Depressão respiratória (FR < 12 irpm ou SatO₂ < 92%)
- Necessidade de doses repetidas de naloxona
- Intoxicação por opioides de longa ação (metadona, buprenorfina)
- Complicações: edema pulmonar, rabdomiólise, convulsões
- Tentativa de autoextermínio
- Idade extrema (crianças, idosos)
- Comorbidades graves (DPOC, insuficiência cardíaca)
- Critérios para UTI:
- Necessidade de ventilação mecânica
- Instabilidade hemodinâmica persistente
- Depressão respiratória refratária
- Coma profundo (Glasgow ≤ 8)
- Edema agudo de pulmão
- Convulsões de difícil controle
Tratamento:
-
Medidas gerais:
- ABC: Via aérea pérvia, oxigenação (O₂ suplementar), acesso venoso
- Monitorização contínua: FC, PA, FR, SatO₂, ECG
- Suporte ventilatório: Ventilação com bolsa-valva-máscara se necessário; intubação orotraqueal se Glasgow ≤ 8 ou depressão respiratória grave
- Descontaminação gastrointestinal:
- Carvão ativado 1 g/kg (dose única) se ingestão oral < 1-2 horas e via aérea protegida
- Não realizar lavagem gástrica de rotina
- Contraindicado se nível de consciência rebaixado sem IOT
- Posicionamento: Decúbito lateral esquerdo (posição de recuperação) para prevenir aspiração
- Hidratação venosa: SF 0,9% para manter PA adequada
- Aquecimento: Se hipotermia
-
Antídoto/Tratamento específico:
- Nome: Naloxona (Narcan®)
- Apresentação: Ampola de 0,4 mg/mL (1 mL); formulação intranasal 2 mg/dose
- Indicações:
- Depressão respiratória (FR < 12 irpm)
- Rebaixamento do nível de consciência com suspeita de intoxicação por opioides
- Apneia ou parada respiratória
- Dose e administração:
- Adultos:
- Sem depressão respiratória grave: 0,05 a 0,4 mg EV (especialmente em dependentes, para evitar abstinência grave)
- Com depressão respiratória grave: 0,4 a 2 mg EV em bolus
- Parada respiratória/PCR: 2 mg EV
- Via intranasal: 2 mg (pré-hospitalar)
- Via intramuscular: 0,4 a 2 mg IM (início de ação mais lento)
- Repetição: A cada 2-3 minutos até reversão da depressão respiratória ou melhora do nível de consciência
- Dose máxima cumulativa: 10 mg EV
- Crianças:
- < 5 anos ou < 20 kg: 0,1 mg/kg EV (máximo 2 mg/dose)
- ≥ 5 anos ou ≥ 20 kg: 2 mg EV
- Repetir: A cada 2-3 minutos se necessário
- Adultos:
- Diluição:
- Pode ser administrada pura em bolus lento (1-2 minutos)
- Para infusão contínua: Naloxona 2 mg (5 ampolas) + SF 0,9% 250 mL = concentração de 0,008 mg/mL
- Prescrição prática:
Naloxona 0,4 mg/mL – 01 ampola (0,4 mg), EV, em bolus lento, dose únicaNaloxona 0,4 mg/mL – 05 ampolas (2 mg), EV, em bolus lento, dose únicaNaloxona 0,4 mg/mL – 01 ampola (0,4 mg), IM, dose única (extra-hospitalar)- Infusão contínua (se necessário):
Naloxona 0,4 mg/mL – 05 ampolas (2 mg) + SF 0,9% 250 mL, EV, iniciar 5 mL/h (0,04 mg/h), titular conforme resposta
- Efeitos adversos do antídoto:
- Síndrome de abstinência aguda em dependentes: agitação, taquicardia, hipertensão, sudorese, náuseas, vômitos, diarreia, midríase, dor abdominal, piloereção
- Edema agudo de pulmão (raro)
- Arritmias cardíacas
- Hipertensão grave
- Convulsões (raro)
- Contraindicações:
- Hipersensibilidade conhecida à naloxona (extremamente raro)
- Não é contraindicação formal, mas usar doses menores em dependentes conhecidos
-
Tratamento de suporte:
- Hipotensão refratária: Expansão volêmica com cristaloides; considerar noradrenalina se não responsivo
- Edema agudo de pulmão: Suporte ventilatório (CPAP/BiPAP ou IOT + VM), diuréticos se necessário
- Convulsões: Benzodiazepínicos (midazolam 5-10 mg EV ou diazepam 10 mg EV)
- Rabdomiólise: Hidratação vigorosa, alcalinização urinária se CPK muito elevada
- Síndrome de abstinência iatrogênica: Benzodiazepínicos, clonidina, controle sintomático
Tempo de observação:
- Mínimo de 4-6 horas após reversão completa dos sintomas e última dose de naloxona
- 24-48 horas para opioides de longa duração (metadona, buprenorfina, fentanil transdérmico)
- Prolongar observação se:
- Necessidade de doses repetidas de naloxona
- Ingestão de formulações de liberação prolongada
- Intoxicação por múltiplas drogas
- Via de administração subcutânea ou transdérmica (absorção prolongada)
- Body packing ou body stuffing (ingestão de pacotes de drogas)
Critérios de alta:
- Clínicos:
- Nível de consciência normal (Glasgow 15)
- Função respiratória adequada (FR > 12 irpm, SatO₂ > 94% em ar ambiente)
- Sinais vitais estáveis por pelo menos 4-6 horas
- Ausência de necessidade de naloxona por período adequado de observação
- Ausência de complicações (edema pulmonar, rabdomiólise)
- Psiquiátricos/Sociais:
- Avaliação psiquiátrica se tentativa de autoextermínio
- Rede de suporte adequada
- Orientação sobre riscos e encaminhamento para tratamento de dependência química
- Orientações pós-alta:
- Retornar imediatamente se sonolência, dificuldade respiratória ou confusão mental
- Evitar dirigir ou operar máquinas por 24 horas
- Não usar opioides ou outras substâncias depressoras do SNC
- Procurar CAPS-AD ou ambulatório de dependência química para seguimento
- Orientação familiar sobre sinais de alerta
Observações importantes:
- Particularidades do manejo:
- A naloxona tem meia-vida curta (20-30 minutos), enquanto opioides têm duração mais prolongada, portanto ressedação é comum e requer vigilância
- Em usuários crônicos, usar doses menores de naloxona inicialmente para evitar abstinência grave
- A ausência de miose NÃO exclui intoxicação por opioides (pode ocorrer em hipóxia grave, intoxicação mista ou uso de meperidina)
- Body packers (transportadores de drogas): considerar TC de abdome; tratamento cirúrgico se obstrução ou ruptura de pacotes
- Fentanil e análogos sintéticos podem requerer doses muito altas de naloxona
- Prognóstico:
- Excelente se reversão adequada e precoce com naloxona
- Mortalidade está relacionada a complicações: anóxia cerebral, edema pulmonar, aspiração, trauma
- Risco de recorrência em usuários de drogas ilícitas
- Complicações tardias a monitorar:
- Pneumonia aspirativa (febre, tosse, infiltrado pulmonar em 24-48h)
- Rabdomiólise e insuficiência renal aguda (monitorar CPK, ureia, creatinina)
- Síndrome compartimental (avaliar pulsos e compartimentos musculares)
- Lesões por pressão e úlceras em pacientes com imobilização prolongada
- Interações relevantes:
- Álcool e benzodiazepínicos: Potencializam depressão respiratória (intoxicação mista comum)
- Anticolinérgicos: Podem causar midríase, mascarando a miose típica
- Inibidores da MAO: Podem causar síndrome serotoninérgica com alguns opioides (meperidina, tramadol)
- Ajustes em populações especiais:
- Gestantes: Naloxona é segura; preocupação com abstinência fetal se uso crônico materno
- Idosos: Maior sensibilidade aos efeitos; usar doses menores de naloxona inicialmente
- Insuficiência renal: Acúmulo de metabólitos ativos de alguns opioides (morfina-6-glicuronídeo); naloxona não requer ajuste
- Insuficiência hepática: Metabolização prolongada de opioides; observação estendida; naloxona não requer ajuste