Intoxicação por Organofosforados e Carbamatos
Classe toxicológica: Inseticidas inibidores da colinesterase (agrotóxicos anticolinesterásicos)
Nomes comerciais/Outros nomes: Malathion, Paration, Fenthion, Diazinon, Clorpirifós, Metamidofós, Temefós, Diclorvós (organofosforados). Aldicarb (Chumbinho), Carbaril, Carbofurano, Propoxur, Metomil (carbamatos). Também presentes em produtos domésticos e industriais.
Dose tóxica:
- Adultos: variável conforme o composto (DL50 entre 2mg/kg a 2.000mg/kg). Organofosforados são geralmente mais tóxicos que carbamatos
- Crianças: maior susceptibilidade, doses menores podem ser letais (< 1mg/kg para compostos altamente tóxicos)
- Observações sobre variabilidade individual: depende do tipo de composto, via de exposição (oral, inalatória, cutânea), concentração do produto e susceptibilidade individual. Organofosforados causam inibição irreversível da colinesterase, enquanto carbamatos causam inibição reversível (recuperação em 24-48h)
Quadro clínico:
- Sinais e sintomas iniciais (primeiras horas):
- Síndrome muscarínica ("síndrome molhada"): sialorréia, lacrimejamento, rinorreia, sudorese, miose puntiforme, broncorreia, broncoespasmo, sibilância, bradicardia, hipotensão, náuseas, vômitos, diarreia, cólicas abdominais, incontinência urinária e fecal
- Síndrome nicotínica: fasciculações musculares generalizadas (especialmente face e pálpebras), cãibras, fraqueza muscular progressiva, taquicardia inicial, hipertensão inicial, midríase (pode ocorrer paradoxalmente), palidez cutânea
- Sistema Nervoso Central: cefaleia, tonturas, confusão mental, ansiedade, agitação ou letargia, ataxia
- Sinais e sintomas tardios:
- Progressão da fraqueza muscular até paralisia flácida (inclusive musculatura respiratória)
- Insuficiência respiratória aguda (por broncoespasmo, broncorreia, depressão do centro respiratório e paralisia muscular)
- Depressão do nível de consciência, estupor, coma
- Convulsões (podem ser refratárias)
- Arritmias cardíacas graves
- Síndrome intermediária (24-96h após): fraqueza de musculatura proximal, cervical e respiratória sem sinais colinérgicos
- Neuropatia tardia (2-4 semanas após): fraqueza e parestesias em membros inferiores, ataxia (mais comum em organofosforados específicos)
- Achados ao exame físico:
- Miose puntiforme bilateral (sinal mais característico, mas pode estar ausente)
- Fasciculações musculares generalizadas
- Broncorreia abundante e sibilância difusa
- Bradicardia ou taquicardia
- Hipotensão
- Redução do nível de consciência
- Hiperperistaltismo intestinal
- Secreções excessivas em vias aéreas
- Fraqueza ou paralisia muscular
Exames complementares indicados:
- Dosagem de colinesterase eritrocitária (acetilcolinesterase - AChE): redução > 50% confirma intoxicação significativa; redução > 70% indica intoxicação grave. Repetir a cada 2 horas nas primeiras 12-24h para avaliar evolução
- Dosagem de colinesterase plasmática (butirilcolinesterase - BChE): menos específica, mas útil quando AChE indisponível
- Gasometria arterial: avaliar acidose metabólica, hipoxemia e hipercapnia
- Eletrólitos (ionograma): avaliar distúrbios hidroeletrolíticos
- Glicemia
- Função renal (ureia, creatinina)
- Função hepática (TGO, TGP, bilirrubinas) - pode haver hepatotoxicidade
- Amilase sérica (pancreatite)
- CPK: avaliar rabdomiólise
- Hemograma completo
- ECG: avaliar bloqueios e arritmias
- Radiografia de tórax: avaliar edema pulmonar e broncoaspiração
- Teste terapêutico com atropina pode confirmar diagnóstico
Critérios de internação:
- Qualquer paciente com sinais e sintomas de intoxicação moderada a grave
- Exposição intencional (tentativa de suicídio) - sempre internar
- Redução da colinesterase > 50% dos valores normais
- Presença de sintomas respiratórios (broncoespasmo, broncorreia, insuficiência respiratória)
- Alteração do nível de consciência
- Fasciculações ou fraqueza muscular
- Necessidade de atropinização
- Convulsões
- Arritmias cardíacas ou instabilidade hemodinâmica
- Critérios para UTI: insuficiência respiratória com necessidade de ventilação mecânica, choque, coma, convulsões refratárias, necessidade de infusão contínua de atropina em altas doses
Tratamento:
-
Medidas gerais:
- ABC da reanimação: manter vias aéreas pérvias, oxigenação adequada, acesso venoso
- Descontaminação cutânea: remover roupas contaminadas (usar EPIs - luvas, avental), lavar pele e cabelos com água e sabão abundantes
- Descontaminação gastrointestinal (se ingestão até 1-2h): lavagem gástrica (contraindicada se convulsões ou rebaixamento de consciência sem via aérea protegida)
- Carvão ativado: 1g/kg (máximo 50g) em dose única, se ingestão até 4h e paciente consciente ou com via aérea protegida
- Suporte ventilatório: oxigênio suplementar, intubação orotraqueal e ventilação mecânica se necessário (aspiração frequente de secreções)
- Monitorização contínua: ECG, oximetria, pressão arterial
- Hidratação venosa: cristaloides para manter perfusão adequada
- Evitar: succinilcolina (bloqueador neuromuscular despolarizante - contraindicado), morfina e outras drogas que aumentem secreções
-
Antídoto/Tratamento específico:
ATROPINA (Sulfato de Atropina)
- Nome: Sulfato de Atropina
- Apresentação: Ampolas de 0,25mg/mL (1mL) ou 0,5mg/mL (1mL)
- Indicações: Reverter efeitos muscarínicos (broncorreia, broncoespasmo, bradicardia, miose, hipersecreções). NÃO reverte efeitos nicotínicos (fasciculações, fraqueza)
- Dose e administração:
- Adultos:
- Dose inicial: 1-2mg (2-4 ampolas de 0,5mg) EV em bolus
- Repetir 1-2mg EV a cada 5-15 minutos até atropinização
- Duplicar a dose a cada administração se resposta inadequada
- Não há dose máxima estabelecida (casos graves podem necessitar > 100mg em 24h)
- Crianças:
- Dose inicial: 0,01-0,05mg/kg EV (mínimo 0,1mg)
- Repetir a cada 5-15 minutos até atropinização
- Dose de manutenção: 0,02-0,08mg/kg/h em infusão contínua
- Adultos:
- Sinais de atropinização adequada (objetivo do tratamento):
- Secura de mucosas (axilas secas - melhor parâmetro)
- Ausculta pulmonar limpa (sem crepitações/sibilâncias)
- Frequência cardíaca > 80bpm
- Pressão arterial normalizada
- Pupilas midriáticas ou normais (NÃO usar como único parâmetro)
- Diluição: Pode ser administrada pura ou diluída em 10-20mL de SF 0,9%
- Prescrição prática:
Sulfato de Atropina 0,5mg/mL - Administrar 2-4 ampolas (1-2mg) EV em bolus a cada 5-15 minutos até atropinizaçãoSulfato de Atropina 0,5mg/mL - Após atropinização, manter infusão contínua com dose titulada para controle de sintomas muscarínicos
- Manutenção da atropinização: Ajustar doses ou intervalos para manter sinais de atropinização por 12-24h (casos graves até 5-7 dias)
- Efeitos adversos do antídoto: Taquicardia, hipertensão, hipertermia, agitação psicomotora, delirium, rubor facial, retenção urinária, íleo paralítico, midríase excessiva. Diferenciar sintomas de intoxicação por atropina de efeitos nicotínicos persistentes
- Contraindicações: Não há contraindicações absolutas na intoxicação aguda grave
PRALIDOXIMA (Cloreto de Pralidoxima, Contrathion®, 2-PAM)
- Nome: Cloreto de Pralidoxima (oxima)
- Apresentação: Ampolas ou frascos de 1g
- Indicações:
- Reverter efeitos nicotínicos (fasciculações, fraqueza muscular, paralisia)
- Auxiliar na reversão de efeitos muscarínicos
- Regenerar a acetilcolinesterase (mais efetiva nas primeiras 24-48h)
- MAIS EFICAZ em organofosforados; efeito limitado em carbamatos (mas pode ser usada na dúvida)
- Dose e administração:
- Adultos:
- Dose de ataque: 1-2g (30mg/kg) EV lento em 15-30 minutos
- Manutenção: 500mg/h OU 8-10mg/kg/h em infusão contínua por 24-48h ou até resolução dos sintomas
- Pode repetir bolus de 1-2g a cada 4-6h se não disponível infusão contínua
- Crianças:
- Dose de ataque: 20-40mg/kg (máximo 2g) EV lento em 15-30 minutos
- Manutenção: 10-20mg/kg/h em infusão contínua
- Adultos:
- Diluição: Diluir 1g em 100mL de SF 0,9% e administrar em 15-30 minutos (NUNCA em bolus rápido)
- Prescrição prática:
Cloreto de Pralidoxima 1g + SF 0,9% 100mL - Administrar EV lento em 20-30 minutos, dose de ataqueCloreto de Pralidoxima - Manutenção: 500mg/h (ou 8-10mg/kg/h) em BIC por 24-48h
- Efeitos adversos do antídoto: Taquicardia, hipertensão, náuseas, tonturas, cefaleia, fraqueza. RISCO DE: laringoespasmo, rigidez muscular e parada cardiorrespiratória se infusão muito rápida
- Contraindicações: Hipersensibilidade conhecida ao medicamento
- IMPORTANTE:
- SEMPRE usar pralidoxima APÓS atropina (nunca antes ou isoladamente)
- Infusão LENTA obrigatória
- Efeito inicial pode piorar sintomas colinérgicos (por isso usar com atropina)
- Mais efetiva se iniciada nas primeiras 24-48h
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Tratamento de suporte:
- Convulsões: Benzodiazepínicos (diazepam 5-10mg EV ou midazolam 5mg EV). Diazepam profilático pode prevenir sequelas neurocognitivas
- Ventilação mecânica: se insuficiência respiratória, aspiração frequente de secreções, PEEP adequado
- Vasopressores: se hipotensão refratária à reposição volêmica (noradrenalina preferencial)
- Correção de distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos
- Suporte nutricional: precoce em casos graves
- Fisioterapia respiratória e motora
- Profilaxia de complicações: úlcera de estresse, trombose venosa profunda
Tempo de observação:
- Mínimo 6-12 horas para todos os pacientes sintomáticos ou com exposição intencional
- 24-48 horas para intoxicações moderadas a graves
- Até 72-96 horas para monitorar síndrome intermediária
- Seguimento ambulatorial por 4-6 semanas para avaliar neuropatia tardia e transtorno neuropsiquiátrico crônico
- Prolongar observação se:
- Necessidade contínua de atropina após 12-24h
- Sintomas recorrentes após suspensão de antídotos
- Exposição a organofosforados lipofílicos (liberação lenta)
- Desenvolvimento de síndrome intermediária
Critérios de alta:
- Ausência de sintomas colinérgicos por pelo menos 12-24 horas
- Não necessitar de atropina nas últimas 12 horas
- Ausência de sinais de fraqueza muscular ou fadiga respiratória
- Colinesterase em elevação (não precisa estar normalizada)
- Estabilidade hemodinâmica e respiratória
- Capacidade de alimentação oral
- Gasometria arterial normal
- Avaliação psiquiátrica e social adequadas (se tentativa de suicídio)
- Orientações pós-alta:
- Evitar nova exposição ao agrotóxico
- Retorno se sintomas recorrentes (fraqueza, dispneia, confusão)
- Seguimento ambulatorial em 7-14 dias para reavaliação clínica e laboratorial
- Acompanhamento neurológico se desenvolver neuropatia tardia
- Suporte psiquiátrico/psicológico se tentativa de autoextermínio
Observações importantes:
- Particularidades do manejo:
- Intoxicação por organofosforados é MAIS GRAVE que por carbamatos (ligação irreversível vs reversível)
- Na dúvida diagnóstica, tratar como organofosforado
- Profissionais de saúde devem usar EPIs ao manusear pacientes contaminados
- "Síndrome molhada" (hipersecreções) é característica marcante
- Miose pode estar ausente em fases iniciais ou com midríase nicotínica paradoxal
- Atropinização é guiada por sinais clínicos, NÃO por dose fixa
- Casos graves podem necessitar doses extraordinariamente altas de atropina (> 100-1000mg/24h)
- Prognóstico:
- Mortalidade: 5-30% (maior em países em desenvolvimento e áreas rurais)
- Fatores de mau prognóstico: exposição a compostos altamente tóxicos, atraso no tratamento, necessidade de ventilação mecânica prolongada, desenvolvimento de síndrome intermediária
- Recuperação completa possível se tratamento adequado e precoce
- Complicações tardias a monitorar:
- Síndrome intermediária (24-96h): fraqueza de musculatura proximal, cervical e respiratória; sem sintomas colinérgicos; pode necessitar ventilação mecânica
- Neuropatia tardia (2-4 semanas): parestesias, fraqueza distal em membros inferiores, déficit motor, ataxia; recuperação lenta e incompleta; mais comum com organofosforados específicos (clorpirifós, metamidofós)
- Transtorno neuropsiquiátrico crônico (semanas a meses): cefaleia persistente, perda de memória, confusão, fadiga, ansiedade, depressão, labilidade emocional
- Pneumonia aspirativa
- Insuficiência renal aguda (rabdomiólise)
- Interações relevantes:
- EVITAR succinilcolina (bloqueador neuromuscular despolarizante) - prolonga apneia
- Cuidado com teofilina, morfina e outras drogas que aumentam secreções
- Fenotiazinas podem potencializar toxicidade
- Ajustes em populações especiais:
- Gestantes: tratar normalmente, risco-benefício favorável ao uso de atropina e pralidoxima
- Idosos: maior risco de complicações cardiovasculares e respiratórias; ajustar doses de atropina com cautela
- Crianças: doses baseadas em peso; maior susceptibilidade à intoxicação
- Insuficiência renal/hepática: não há ajuste específico de atropina; pralidoxima pode acumular em insuficiência renal grave (monitorar)
- Notificação compulsória: todos os casos suspeitos ou confirmados devem ser notificados ao SINAN (ficha de intoxicação exógena) e CAT se exposição ocupacional