Intoxicação por Paracetamol
Manejo de intoxicação exógena por Paracetamol.
- Classe toxicológica: Analgésico não opioide e antipirético
- Nomes comerciais/Outros nomes: Tylenol, Dôrico, Parador, Resfenol, Acetaminofeno, Acetominofen, N-acetil-para-aminofenol
Dose tóxica:
- Adultos: > 7,5 g em dose única ou > 150 mg/kg
- Crianças: > 150 mg/kg ou > 200 mg/kg
- Observações sobre variabilidade individual:
- Dose terapêutica máxima: 4 g/dia em adultos, 2 g/dia em etilistas
- Em crianças: dose terapêutica de 50 mg/kg/dia
- Hepatotoxicidade pode ocorrer com ingestões de 2-4 vezes a dose terapêutica
- Overdoses < 150 mg/kg são improváveis de resultar em toxicidade
- Fatores de risco: doença hepática prévia, etilismo crônico, desnutrição, uso de indutores enzimáticos (fenitoína, carbamazepina)
Quadro clínico:
- Sinais e sintomas iniciais (primeiras horas - Fase I: 0-24h):
- Assintomático ou sintomas inespecíficos
- Anorexia
- Náuseas e vômitos
- Mal-estar generalizado
- Palidez
- Diaforese
- Letargia
- Sinais e sintomas tardios:
- Fase II (24-72h): Melhora aparente dos sintomas iniciais, início de elevação de transaminases, dor em quadrante superior direito do abdomen, hepatomegalia
- Fase III (72-96h): Pico de hepatotoxicidade, icterícia, coagulopatia (sangramento), confusão mental/encefalopatia hepática, insuficiência renal aguda, acidose metabólica, hipoglicemia
- Fase IV (> 5 dias): Recuperação completa ou evolução para insuficiência hepática fulminante e morte
- Achados ao exame físico:
- Fase inicial: geralmente exame físico normal
- Fase II-III: hepatomegalia dolorosa, icterícia, sinais de encefalopatia (alteração do nível de consciência, asterixis), manifestações hemorrágicas
Exames complementares:
- Função hepática (admissão e diariamente por 3 dias):
- AST (TGO) e ALT (TGP)
- Bilirrubinas totais e frações
- Fosfatase alcalina, Gama-GT
- Coagulograma: TP/INR, TTPA
- Função renal: ureia, creatinina
- Eletrólitos: sódio, potássio, cálcio, bicarbonato, cloro
- Glicemia
- Gasometria arterial (se sinais de gravidade)
- Hemograma completo
- CPK (se suspeita de rabdomiólise)
- Amilase (se suspeita de pancreatite)
- Nível sérico de salicilato (descartar coingestão)
Critérios de internação:
- Ingestão de dose potencialmente tóxica (> 150 mg/kg ou > 7,5 g)
- Nível sérico de paracetamol acima da linha de tratamento no nomograma de Rumack-Matthew
- Tempo de ingestão desconhecido com nível sérico > 10 mcg/mL
- Qualquer elevação de transaminases
- Presença de sintomas (náuseas, vômitos, dor abdominal)
- Ingestão com intenção suicida
- História clínica não confiável
- Critérios para UTI:
- Encefalopatia hepática
- Coagulopatia grave (INR > 3)
- Insuficiência hepática fulminante
- Insuficiência renal aguda
- Acidose metabólica refratária
- Níveis séricos > 900 mcg/mL
- Necessidade de hemodiálise ou avaliação para transplante hepático
Tratamento:
-
Medidas gerais:
- Estabilização ABC (vias aéreas, respiração, circulação)
- Acesso venoso calibroso
- Monitorização contínua de sinais vitais
- Oxigenoterapia se necessário
- Hidratação venosa com SF 0,9%
- Suporte de vômitos: Ondansetrona 4-8 mg EV
- Descontaminação gástrica:
- Carvão ativado 1 g/kg (máximo 50 g) VO ou SNG
- Indicado se ingestão há menos de 1-2 horas
- Contraindicado se rebaixamento do nível de consciência sem via aérea protegida
- Dose única (não fazer doses repetidas)
- Correção de hipoglicemia se presente
- Correção de distúrbios hidroeletrolíticos
-
Antídoto/Tratamento específico:
- Nome: N-acetilcisteína (NAC) - Fluimucil®
- Apresentação:
- Solução oral 20% (200 mg/mL) - frasco 30 mL
- Solução IV 10% (100 mg/mL) - ampola 30 mL (3 g)
- Indicações:
- Ingestão há < 24h com critérios no nomograma de Rumack-Matthew
- Ingestão > 30 g em adulto
- Concentração sérica de paracetamol desconhecida com previsão de demora do resultado > 8h
- História clínica não confiável + paracetamol sérico > 10 mcg/mL ou transaminases elevadas
- Manifestações de disfunção hepática (encefalopatia, coagulopatia, acidose)
- Ingestão repetida supraterapêutica: paracetamol ≥ 20 mcg/mL ou elevação de transaminases
- Dose e administração:
- Via Oral (preferir se náuseas/vômitos ausentes):
- Dose de ataque: 140 mg/kg diluído em 200 mL de SGI 5% ou suco de laranja
- Manutenção: 70 mg/kg a cada 4 horas por 17 doses (total de 18 doses em 72 horas)
- Via Endovenosa (preferir se náuseas/vômitos, rebaixamento do sensório ou hepatotoxicidade):
- Dose de ataque: 150 mg/kg EV em 200 mL de SGI 5%, infundir em 60 minutos
- Segunda dose: 50 mg/kg EV em 500 mL de SGI 5%, infundir em 4 horas (12,5 mg/kg/h)
- Terceira dose: 100 mg/kg EV em 1000 mL de SGI 5%, infundir em 16 horas (6,25 mg/kg/h)
- Total: 300 mg/kg em 21 horas
- Crianças: mesmas doses por kg
- Via Oral (preferir se náuseas/vômitos ausentes):
- Diluição:
- Via oral: diluir em suco de laranja ou SGI 5% (1:3 ou 1:4)
- Via EV: diluir em SGI 5% conforme esquema acima
- Prescrição prática:
- Via Oral:
N-acetilcisteína 20% (200mg/mL) – Dose de ataque: ___ mL diluídos em 200 mL de SGI 5% ou suco de laranja, administrar VO ou por SNGN-acetilcisteína 20% (200mg/mL) – Manutenção: ___ mL diluídos em 100 mL de SGI 5%, administrar VO ou por SNG de 4/4h por 17 doses
- Via Endovenosa:
N-acetilcisteína 10% (100mg/mL) – Dose de ataque: ___ mL + SGI 5% 200 mL, infundir EV em 60 minutosN-acetilcisteína 10% (100mg/mL) – 2ª dose: ___ mL + SGI 5% 500 mL, infundir EV em 4 horasN-acetilcisteína 10% (100mg/mL) – 3ª dose: ___ mL + SGI 5% 1000 mL, infundir EV em 16 horas
- Via Oral:
- Efeitos adversos do antídoto:
- Reações anafilactoides (mais comum com via EV): urticária, prurido, rash, broncoespasmo, hipotensão (ocorre em 10-20% dos pacientes)
- Náuseas e vômitos (mais comum via oral)
- Cefaleia
- Manejo de reação anafilactoide: interromper infusão, administrar anti-histamínico ± corticoide, reiniciar infusão em velocidade reduzida
- Contraindicações: Hipersensibilidade conhecida à N-acetilcisteína (relativa)
-
Tratamento de suporte:
- Vitamina K 10 mg EV se coagulopatia
- Plasma fresco congelado ou concentrado de complexo protrombínico se sangramento ativo
- Correção de hipoglicemia: Glicose 50% 40-60 mL EV
- Hemodiálise: indicada se níveis séricos > 900 mcg/mL, acidose metabólica grave refratária, ou insuficiência hepática fulminante
- Transplante hepático: considerar se insuficiência hepática fulminante pelos critérios de King's College modificados
Tempo de observação:
- Mínimo de 24 horas se dose potencialmente tóxica ingerida
- 48-72 horas se elevação de transaminases
- Prolongar observação se:
- Persistência de sintomas
- Elevação progressiva de transaminases
- Desenvolvimento de coagulopatia
- Alteração do nível de consciência
- Se ingestão de formulação de liberação prolongada: observação mínima 48h e duas dosagens séricas (4h e 8h após ingestão)
Critérios de alta:
- Assintomático por pelo menos 24 horas
- Função hepática normal ou em melhora (AST e ALT < 50 UI/L ou em queda progressiva)
- Coagulograma normal
- Função renal normal
- Ausência de encefalopatia
- Nível sérico de paracetamol < 10 mcg/mL
- Tratamento completo com N-acetilcisteína se indicado
- Avaliação psiquiátrica se ingestão intencional
- Orientações sobre não uso de hepatotóxicos
- Acompanhamento ambulatorial agendado
Observações importantes:
- Particularidades do manejo:
- A eficácia da N-acetilcisteína é máxima se iniciada nas primeiras 8 horas (diminui mortalidade em 21-28%)
- Benefício da N-acetilcisteína persiste mesmo após 24h da ingestão em pacientes com hepatotoxicidade
- O nomograma de Rumack-Matthew só é válido para ingestão aguda única nas últimas 24h
- Não aplicar nomograma em: ingestão crônica, ingestão repetida, tempo de ingestão desconhecido, ingestão > 24h
- Via EV preferível se: náuseas/vômitos, rebaixamento sensório, sinais de hepatotoxicidade
- Via oral tem eficácia semelhante mas maior incidência de vômitos
- Carvão ativado pode interferir na absorção de N-acetilcisteína oral (administrar com intervalo)
- Prognóstico:
- Excelente se tratamento precoce (< 8h)
- Mortalidade < 1% se tratamento adequado
- Recuperação completa em 5-7 dias na maioria dos casos sem hepatotoxicidade grave
- Complicações tardias a monitorar:
- Insuficiência hepática fulminante (pico em 72-96h)
- Insuficiência renal aguda
- Pancreatite
- Miocardite (rara)
- Encefalopatia hepática
- Interações relevantes:
- Indutores enzimáticos (fenitoína, carbamazepina, rifampicina, isoniazida) aumentam risco de hepatotoxicidade
- Etanol: uso agudo tem efeito protetor (compete pela CYP2E1), uso crônico aumenta risco
- Inibidores da CYP2E1 (cimetidina) podem ter efeito protetor
- Ajustes em populações especiais:
- Gestantes: N-acetilcisteína categoria B - usar sem restrições, benefício supera risco
- Idosos: maior risco de hepatotoxicidade, ajustar dose pela massa corporal
- Insuficiência renal: não necessita ajuste de dose de N-acetilcisteína
- Insuficiência hepática prévia: maior risco de toxicidade, iniciar N-acetilcisteína precocemente
- Etilistas crônicos: dose tóxica menor (> 2 g/dia), maior suscetibilidade à hepatotoxicidade
- Critérios de King's College modificados para insuficiência hepática fulminante:
- pH arterial < 7,30 (após ressuscitação) OU
- INR > 6,5 (TP > 100 segundos) + Creatinina > 3,4 mg/dL + Encefalopatia grau III ou IV
- Presença de qualquer critério indica mau prognóstico e necessidade de avaliação para transplante hepático