Intoxicação por Metanol
Classe toxicológica: Álcool tóxico/Solvente industrial
Nomes comerciais/Outros nomes: Álcool metílico, álcool de madeira. Encontrado como adulterante em bebidas alcoólicas artesanais ou clandestinas.
Dose tóxica:
- Adultos:
- Dose tóxica mínima: 0,3-1 g/kg (aproximadamente 30-100 mL em adulto de 70 kg)
- Dose potencialmente fatal: 1-2 g/kg (100-200 mL)
- Crianças:
- Qualquer quantidade é potencialmente grave
- Dose fatal: 10-30 mL
- Observações: A toxicidade é altamente variável. A ingestão concomitante de etanol prolonga o período de latência e pode mascarar sintomas iniciais, mas não previne toxicidade tardia.
Quadro clínico:
- Sinais e sintomas iniciais (6-30 horas):
- Sintomas inespecíficos de embriaguez
- Náuseas, vômitos
- Dor abdominal e epigástrica
- Cefaleia
- Tontura e vertigem
- Possível melhora clínica aparente ("intervalo lúcido")
- Sinais e sintomas tardios (12-48 horas):
- Alterações visuais: visão turva/borrada, fotofobia, "visão de nevasca" (campo nevado), escotomas, diplopia
- Redução da acuidade visual até cegueira
- Confusão mental progressiva
- Convulsões
- Rebaixamento do nível de consciência até coma
- Taquipneia (respiração de Kussmaul)
- Insuficiência renal aguda
- Pancreatite aguda
- Morte
- Achados ao exame físico:
- Hiperemia de disco óptico ao fundo de olho (tardio)
- Midríase com resposta pupilar lentificada
- Taquipneia compensatória (acidose)
- Taquicardia ou bradicardia
- Hipotensão arterial (casos graves)
- Sinais de desidratação
- Rebaixamento do nível de consciência
- Atrofia óptica (sequela permanente)
Exames complementares indicados:
- Imediatos:
- Gasometria arterial (repetir a cada 2-4 horas)
- Eletrólitos completos (Na⁺, K⁺, Cl⁻, HCO₃⁻)
- Ureia e creatinina
- Glicemia
- Osmolaridade sérica medida
- Cálculo do ânion gap: [Na⁺] - ([Cl⁻] + [HCO₃⁻]) – normal: 8-16 mEq/L
- Cálculo do gap osmolar: Osmolaridade medida - Osmolaridade calculada
- Osmolaridade calculada = 2 × [Na⁺] + [Glicose]/18 + [Ureia]/6
- Gap osmolar > 10 mOsm/L sugere presença de osmol não medido (metanol)
- Complementares:
- Hemograma completo
- Função hepática (TGO, TGP, bilirrubinas)
- Amilase e lipase
- Lactato sérico
- ECG de 12 derivações (repetir se alterações)
- Dosagem sérica de metanol (quando disponível) – tóxica: > 200 mg/L
- Dosagem de etanol sérico (se disponível) – para monitorar terapia
- Timing: Gasometria e eletrólitos a cada 2-4 horas até estabilização do pH e do ânion gap.
Critérios de internação:
- Internação obrigatória (todos os casos suspeitos ou confirmados):
- História de ingestão de bebida alcoólica com sintomas compatíveis após 12 horas
- Qualquer alteração visual relacionada ao evento
- Acidose metabólica com ânion gap elevado (> 16 mEq/L) sem outra causa
- Gap osmolar > 10 mOsm/L
- pH arterial < 7,35
- Bicarbonato < 20 mEq/L
- Sintomas neurológicos (confusão, convulsões, rebaixamento de consciência)
- Dosagem de metanol > 200 mg/L
- Critérios para UTI:
- pH arterial < 7,25
- Rebaixamento do nível de consciência (Glasgow < 13)
- Convulsões
- Instabilidade hemodinâmica
- Necessidade de hemodiálise
- Insuficiência renal aguda
- Alterações visuais graves
Tratamento:
-
Medidas gerais:
- Garantir via aérea pérvia e suporte ventilatório (intubação orotraqueal se Glasgow < 8)
- Acesso venoso calibroso (2 acessos periféricos)
- Monitorização contínua: FC, PA, FR, SatO₂, ECG, glicemia capilar
- Monitorar pupilas e acuidade visual a cada 2-4 horas
- Hidratação venosa: SF 0,9% 1000-2000 mL para manter diurese > 0,5 mL/kg/h
- Não realizar: Lavagem gástrica (ineficaz após absorção)
- Não realizar: Carvão ativado (não adsorve metanol)
- Sonda nasoenteral (SNE) para administração de etanol
- Sonda vesical de demora para controle de diurese
-
Antídoto/Tratamento específico:
FOMEPIZOL (Antídoto de primeira escolha - quando disponível)
- Nome: Fomepizol (4-metilpirazol)
- Apresentação: Frasco-ampola de 1,5 g/1,5 mL (concentração: 1 g/mL)
- Suspeita clínica forte de intoxicação por metanol
- Ingestão > 0,4 g/kg (aproximadamente 30 mL em adulto)
- pH < 7,3
- Ânion gap > 16 mEq/L
- Gap osmolar > 10 mOsm/L
- Dosagem de metanol ≥ 20 mg/dL (200 mg/L)
- Qualquer alteração visual
- Não aguardar confirmação laboratorial se suspeita alta
- Vantagens sobre etanol: Não causa embriaguez, não requer monitorização de níveis séricos, administração mais simples, menos efeitos adversos
- Dose e administração:
- Dose de ataque: 15 mg/kg IV
- Dose de manutenção:
- 10 mg/kg IV a cada 12 horas (por 4 doses)
- Após 4 doses: aumentar para 15 mg/kg IV a cada 12 horas
- Durante hemodiálise: Administrar a cada 4 horas (fomepizol é dialisável)
- Tempo de infusão: 30 minutos
- Diluição:
- Diluir em SF 0,9% ou SG 5%
- Concentração máxima: 25 mg/mL
- Volume mínimo de diluição: 100 mL
- Prescrição prática (paciente de 60 kg):
FOMEPIZOL 1,5 g/1,5 mL – Diluir 01 frasco-ampola (900 mg = 0,9 mL) + SF 0,9% 100 mL, EV, em 30 minutos – DOSE DE ATAQUEFOMEPIZOL 1,5 g/1,5 mL – Diluir 01 frasco-ampola (600 mg = 0,6 mL) + SF 0,9% 100 mL, EV, em 30 minutos, a cada 12 horas – MANUTENÇÃO (4 doses)FOMEPIZOL 1,5 g/1,5 mL – Diluir 01 frasco-ampola (900 mg = 0,9 mL) + SF 0,9% 100 mL, EV, em 30 minutos, a cada 12 horas – MANUTENÇÃO (após 4ª dose)Durante HD: FOMEPIZOL 1,5 g/1,5 mL – Diluir 01 frasco-ampola (900 mg = 0,9 mL) + SF 0,9% 100 mL, EV, em 30 minutos, a cada 4 horas
- Duração do tratamento:
- Até metanolemia < 20 mg/dL (200 mg/L)
- E resolução da acidose metabólica (pH > 7,30)
- E ausência de sintomas
- Efeitos adversos:
- Cefaleia (leve a moderada)
- Náuseas
- Tontura
- Reações no local da infusão (flebite)
- Erupção cutânea (raro)
- Eosinofilia (raro)
- Contraindicações:
- Hipersensibilidade conhecida ao fomepizol ou outros pirazóis
- Gravidez (usar apenas se benefício superar risco)
- Monitorização durante tratamento com fomepizol:
- Gasometria arterial a cada 2-4 horas
- Eletrólitos a cada 4-6 horas
- Função renal diária
- Dosagem de metanol (se disponível) a cada 12-24 horas
- Não é necessário monitorar níveis de fomepizol
ETANOL (Alternativa quando fomepizol indisponível)
- Nome: Etanol farmacêutico (ou vodka 40% via sonda nasoenteral)
- Apresentação:
- Etanol farmacêutico: Solução para infusão IV 5% ou 10%
- Alternativa: Vodka 40% (via sonda nasoenteral)
- Indicações:
- Mesmas do fomepizol (quando este não estiver disponível)
- Não aguardar confirmação laboratorial se suspeita alta
- Dose e administração:
- Adultos (via SNE – Vodka 40% diluída):
- Preparar solução a 20%: Diluir vodka 40% em água 1:1 (ex: 100 mL vodka + 100 mL água)
- Dose de ataque: 0,8 g/kg
- Cálculo (paciente 70 kg): 70 × 0,8 = 56 g de etanol
- Volume da solução 20% (densidade 0,16 g/mL): 56 ÷ 0,16 = 350 mL
- Dose de manutenção: 0,1-0,2 g/kg/h (média: 0,15 g/kg/h)
- Cálculo (paciente 70 kg): 70 × 0,15 = 10,5 g/h
- Volume/hora da solução 20%: 10,5 ÷ 0,16 = 66 mL/h
- Durante hemodiálise: Aumentar para 0,25-0,35 g/kg/h (metanol e etanol são dialisáveis)
- Cálculo (paciente 70 kg): 70 × 0,3 = 21 g/h
- Volume/hora: 21 ÷ 0,16 = 131 mL/h
- Crianças:
- Mesmas doses proporcionais ao peso
- Preferir etanol IV se disponível
- Adultos (via SNE – Vodka 40% diluída):
- Diluição:
- Via SNE: Vodka 40% diluída 1:1 com água destilada ou filtrada (solução final a 20%)
- Via IV (se etanol farmacêutico disponível): Solução de etanol 5-10% em SF 0,9% ou SG 5%
- Prescrição prática:
ETANOL (Vodka 40%) – Diluir 200 mL de vodka + 200 mL de água = 400 mL de solução final a 20%Dose de ataque: Administrar 350 mL (para paciente de 70 kg) via SNE, em 30-60 minutosDose de manutenção: Infundir 66 mL/h (para paciente de 70 kg) via SNE em bomba de infusãoAjustar dose conforme etanolemia (alvo: 100-150 mg/dL) ou resposta clínicaDurante hemodiálise: Aumentar para 131 mL/h (para paciente de 70 kg)
- Objetivo terapêutico:
- Manter etanolemia entre 100-150 mg/dL (quando dosagem disponível)
- Manter por no mínimo 48-72 horas ou até metanolemia < 200 mg/L
- Efeitos adversos do antídoto:
- Embriaguez
- Hipoglicemia (especialmente em crianças)
- Depressão respiratória
- Gastrite
- Hepatotoxicidade (uso prolongado)
- Flebite (etanol IV)
- Contraindicações:
- Relativas (benefício supera risco):
- Hepatopatia grave
- Pancreatite aguda
- Gravidez (usar com cautela)
- Relativas (benefício supera risco):
- Monitorização durante o tratamento:
- Gasometria arterial a cada 2-4 horas
- Glicemia capilar a cada 2 horas
- Etanolemia (se disponível) a cada 6-12 horas
- Função renal diária
-
Tratamento de suporte:
-
Correção da acidose metabólica:
Bicarbonato de Sódio 8,4% 10 mEq/10 mL – Diluir 03 ampolas (30 mL) + SF 0,9% 120 mL, EV- Dose de ataque (se pH < 7,15): 1-2 mEq/kg IV em bolus (ex: 2-3 ampolas para adulto 70 kg)
- Manutenção: 150 mEq de NaHCO₃ em 850 mL de SG 5%, correr a 150-200 mL/h
- Alvo: pH > 7,25-7,30
- Ajustar conforme gasometrias seriadas
-
Ácido folínico (Leucovorin):
Ácido Folínico 50 mg – 01 frasco-ampola + SF 0,9% 100 mL, EV, em 30 minutos, a cada 6 horas- Dose: 30-50 mg IV a cada 6 horas por 48 horas
- Função: Cofator para metabolização do ácido fórmico
-
Controle de convulsões:
- 1ª linha:
Midazolam 5 mg/mL – 02 ampolas (10 mg) + SF 0,9% 80 mL, EV, em 2-5 minutos - Alternativa:
Diazepam 10 mg/2 mL – 02 ampolas (20 mg), EV, lento - 2ª linha (se refratário):
Fenitoína 250 mg/5 mL – 04 ampolas (1000 mg) + SF 0,9% 250 mL, EV, em 30 minutosou fenobarbital
- 1ª linha:
-
Hipoglicemia:
Glicose 50% 10 mL – 02 ampolas (20 mL), EV, em bolus- Reavaliar glicemia capilar após 15 minutos
-
Suporte hemodinâmico:
- Reposição volêmica agressiva
- Vasopressores se necessário:
Noradrenalina 4 mg/4 mL – 05 ampolas + SF 0,9% 226 mL, EV em BIC
-
Hemodiálise:
- Indicações absolutas:
- Nível sérico de metanol > 500 mg/L
- Acidose metabólica severa (pH < 7,25) refratária a bicarbonato
- Insuficiência renal aguda com oligúria
- Alterações visuais persistentes
- Alterações neurológicas graves (coma, convulsões refratárias)
- Deterioração clínica progressiva apesar do tratamento
- Duração: Até metanolemia < 200 mg/L e resolução da acidose
- Atenção: Aumentar dose de etanol durante diálise (ambos são removidos)
- Contatar nefrologia imediatamente se critérios presentes
- Indicações absolutas:
-
Tempo de observação:
- Mínimo: 24-48 horas para todos os casos suspeitos, mesmo assintomáticos
- Prolongar observação se:
- Ingestão > 0,5 g/kg (> 40 mL)
- Ingestão concomitante significativa de etanol (aumenta latência)
- Qualquer alteração em exames laboratoriais
- Desenvolvimento de sintomas, mesmo leves
- Gap osmolar > 10 mOsm/L ou ânion gap > 16 mEq/L
- Internação até: Resolução completa da acidose, normalização do gap osmolar e do ânion gap, ausência de sintomas por pelo menos 24 horas
Critérios de alta:
- Todos os critérios devem estar presentes:
- Assintomático por pelo menos 24 horas
- pH arterial > 7,35
- Bicarbonato > 22 mEq/L
- Ânion gap normalizado (< 16 mEq/L)
- Gap osmolar normalizado (< 10 mOsm/L)
- Função renal normal ou estável
- Ausência de alterações visuais
- Glasgow 15
- Dosagem de metanol < 200 mg/L (se disponível)
- Avaliação oftalmológica normal ou programada
- Orientações pós-alta:
- Retorno em 7 dias para avaliação oftalmológica (fundo de olho)
- Retorno imediato se: alterações visuais, confusão mental, vômitos persistentes
- Abstinência alcoólica absoluta por pelo menos 30 dias
- Evitar consumo de bebidas alcoólicas de origem desconhecida
- Acompanhamento ambulatorial com toxicologia/clínica médica
Observações importantes:
- Particularidades do manejo:
- O período de latência pode ser enganoso: paciente aparentemente "recuperado" pode deteriorar drasticamente após 12-24 horas
- A ingestão concomitante de etanol (comum em festas/eventos) PROLONGA o período de latência, mas NÃO protege contra toxicidade tardia
- O ânion gap pode ser NORMAL nas primeiras horas – não descartar intoxicação precocemente
- O gap osmolar diminui à medida que o metanol é metabolizado, mas a acidose piora
- Fomepizol vs Etanol:
- Fomepizol é primeira escolha (mais seguro, mais fácil)
- Etanol é alternativa eficaz quando fomepizol indisponível
- Não administrar ambos simultaneamente
- Se usar etanol: deve ser mantido continuamente durante todo o tratamento – interrupções permitem metabolização do metanol
- Durante hemodiálise: ajustar frequência do antídoto (fomepizol a cada 4h; etanol aumentar dose)
- Prognóstico:
- A cegueira pode ser IRREVERSÍVEL se tratamento não for iniciado precocemente
- Atrofia do nervo óptico é sequela permanente comum
- Mortalidade: 10-30% em casos graves sem tratamento adequado
- Mortalidade < 5% com tratamento precoce e hemodiálise
- Complicações tardias a monitorar:
- Cegueira permanente (atrofia óptica)
- Parkinsonismo secundário (lesões em núcleos da base)
- Neuropatia periférica
- Insuficiência renal crônica
- Sequelas cognitivas
- Pancreatite crônica
- Interações relevantes:
- Inibidores da álcool desidrogenase prolongam período de latência
- Outros álcoois competem pela mesma enzima
- Etanol é o tratamento de escolha na ausência de fomepizol
- Ajustes em populações especiais:
- Gestantes:
- Fomepizol é preferível ao etanol (categoria C vs D)
- Etanol é categoria D, mas risco-benefício favorece uso em intoxicação grave se fomepizol indisponível
- Monitorar vitalidade fetal
- Hemodiálise preferencial
- Idosos:
- Preferir fomepizol (evita efeitos do etanol)
- Se usar etanol: ajustar doses pela função renal, maior risco de hipoglicemia e depressão respiratória
- Insuficiência renal: Hemodiálise precoce. Ajustar dose de bicarbonato. Fomepizol e etanol não necessitam ajuste de dose (mas aumentar frequência durante HD).
- Insuficiência hepática: Fomepizol é preferível ao etanol. Se usar etanol: cautela extrema.
- Crianças:
- Fomepizol: mesmas doses por kg
- Etanol: maior risco de hipoglicemia. Monitorar glicemia capilar a cada hora. Preferir etanol IV quando possível.
- Gestantes:
- Notificação obrigatória:
- Todos os casos suspeitos e confirmados são de NOTIFICAÇÃO IMEDIATA
- Notificar ao CIEVS municipal/estadual/nacional via:
- Disque-notifica: 0800-644-6645
- Disque-Intoxicação Anvisa: 0800-722-6001
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- Classificar como "Evento de Saúde Pública (ESP)"
- CID: T51.1 - Efeito tóxico do metanol
- Suporte de CIATox:
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- Disponível 24 horas
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